Receita para ler Imaginação Fértil:
1 – Leia a primeira parte – Valsa do Quotidiano
2 – Leia a segunda parte – A Sinfonia do Inferno
3 – Pergunte: Por que será que o autor colocou esse ‘A’ no início do título da segunda parte?
4 – Agradeça aos céus por tudo o que é diferente na parte dois NÃO ter a mínima chance de acontecer na vida real.
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VALSA DO QUOTIDIANO
Você acorda pela manhã. O despertador tocando.
É cedo. O quarto ainda está tomado pela escuridão.
Você se estica todo, respira fundo, ouve os estalos nos ossos e chuta
os cobertores para longe sentindo o frescor matinal em sua pele.
Cedo demais, mas você precisa levantar. O dever, ou algo que o valha, o chama.
Você levanta, veste-se, lava o rosto no banheiro e segue até a
cozinha onde prepara o breakfast. Uma torrada de pão integral com uma
fatia de queijo muzzarela e outra de peito de peru. Uma xícara de café
preto com três gotas de aspartame. Um pote de iogurte e uma banana. O
remédio para a hipertensão, o comprimido para o colesterol, o complexo
de vitaminas e… uma última pastilha que você nem lembra mais para o que
serve.
Enquanto escova os dentes você revista a carteira onde há apenas
algumas poucas cédulas e checa a hora e as possíveis mensagens no
celular, tentando fazer tudo isso junto da forma mais eficiente e menos
estabanada possível. Mensagens automáticas, ofertas de planos de
celular, inclusive do plano de celular que você já tem no seu próprio
celular, são o que há para se ver.
Contrariado com as mensagens, você tosse e cospe a espuma da pasta de
dente na pia do banheiro, tentando não se engasgar. Colhe água da
torneira com a concha da mão, sorvendo-a e fazendo alguns gargarejos.
Você se olha no espelho. Penteia os cabelos. As covas ao redor dos
olhos parecem ser as mesmas de sempre, mesmo você sabendo que elas
sequer existiam uma década antes.
Você deixa o apartamento, duas voltas nas chaves das duas fechaduras,
e segue pelo corredor do terceiro andar. Alguém passa por você. Seu
aceno de cabeça silencioso é correspondido de forma análoga pelo
vizinho, e ambos seguem seus caminhos pelo corredor tomado pela
penumbra.
Você chama o elevador e o aguarda. Quando a porta se abre, você entra
e aperta o botão do andar térreo. Como de costume, você ouve o
estrépito de mecanismos e engrenagens e cabos invisíveis que se atritam.
Prédio antigo. Elevador jurássico. Sorte que ainda funciona.
Atravessando o corredor que dá acesso ao exterior, você cumprimenta o porteiro e inicia sua caminhada rumo ao trabalho.
O movimento começa a se intensificar, as pessoas abandonando a
letargia do final de semana e tomando conta da cidade grande,
prenunciando mais uma segunda-feira de trabalho e correria.
A barulheira do movimento se intensifica e você puxa os fones de
ouvido do celular e pendura as extremidades em seus ouvidos, acionando
os solos de guitarra de um grupo de rock psicodélico dos anos setenta,
cujos acordes e vocais harmoniosos e dissonantes o acalmam e distraem.
Enquanto caminha ao som da música, você observa a repetição monótona
de carros e ônibus passando pelas ruas e as pessoas andando pelas
calçadas, lotando-as aos poucos.
Você vê os grandes prédios que tentam bloquear a imagem do céu azul, em mais um dia de temperatura agradável, sem nuvens.
Lojas e butiques abrem suas portas disputando espaço com ambulantes
que espalham suas mercadorias sobre toalhas pelo piso do passeio
público.
Você observa as pessoas vindo em sua direção. Homens de óculos
escuros e ternos e maletas e expressões ausentes. Mulheres elegantes e
formosas de saltos e bustos altos com olhares insinuantes. Jovens
apressados com suas mochilas e bonés enormes. Crianças uniformizadas de
acordo com os padrões de suas escolas ou da moda. Mães carregando
criancinhas choronas. Skaters e motoqueiros atravessando os
engarrafamentos diante dos semáforos fechados com grande habilidade e
muito estrépito, provocando reclamações e buzinas de gente inconformada
dentro dos carros que deveriam estar andando.
Um conhecido o cumprimenta.
Você sorri.
E é sorridente, assoviando uma bela canção, que você prossegue em seu caminho rumo ao trabalho.
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